domingo, 22 de março de 2015

Nita Domingos...

Há pessoas que cruzam o nosso caminho e se tornam uma bênção.
Foi o caso da Nita Domingos, uma "menina-mulher" cheia de coragem, esperança e gratidão pela vida.
Esta é uma partilha íntima e pessoal, por isso, não estranhem a troca de afectos...

 
 
Quem é a Nita Domingos?
 
Uma jovem muito intensa, cheia de força e vontade de fazer acontecer. Teimosa, obstinada, feliz e perfeccionista, que vive para o seu mundo.
 
 
Tinhas 3 anos quando perdeste a visão e, aos 6, é-te diagnosticada neurofibromotose tipo II. Percebeste, nessa altura, o que se estava a passar? O que te diziam os médicos? E os teus pais?
 
Não me apercebi bem do que se tratava e, por um lado, é mau... por outro, faz parte... eu cresci assim, cresci a ter de lidar com isso, mas não cresci de modo diferente. Claro que, aos meus pais, deve-lhes ter caído o chão, mas nunca desistiram de procurar o melhor para mim, para a minha saúde e para a minha vida. Por isso, estou-lhes eternamente grata. Tenho muita sorte nos pais que tenho.
 
 
 
Ainda muito pequena, fizeste várias operações fora do país e perdeste a audição... a tua infância e adolescência difere, em quê, das outras crianças? Ias à escola? Fazias as mesmas coisas que as outras meninas, apesar das tuas "limitações"?
 
Fazia exactamente tudo o alguém "normal" fazia. Eu era uma excelente aluna, fui campeã das olimpíadas de matemática, na escola, fui durante anos seguidos delegada de turma... vivi sempre muito intensamente. Perdi a audição aos 17 e saía na mesma, sentia a vibração. Aguentava horas a dançar. Eu expunha-me às situações - claro que, havia sempre quem apontasse o dedo ou olhasse torto, ou comentasse mas, isso não me incomodava de todo...eu tenho algo maravilhoso, que é o meu amor-próprio, o meu amor à minha vida. Eu desviava a cara e saía do lugar onde não me sentia bem ou, então, ridicularizava a situação.
Sempre tive bons amigos, lutei muito por isso e, como era uma espécie de psicóloga, sempre tive muita coisa por perto para me entreter a cabeça e criar sinergias com as pessoas. Adorava ir à escola. Queria ser sempre a melhor. Queria sempre mais. Trabalhava para isso e nunca aceitei fazer testes diferentes ou ter mais tempo porque via mal ou ouvia mal. Nunca quis ir por aí. Queria ser igual em tudo e, por isso, quem tinha de fazer um esforço acrescido era eu. E fi-lo e faço-o.
 
 
Tens, neste momento, 24 anos... vives com um tumor na cabeça e outro na garganta... irradias felicidade e fazes dela o teu projecto de vida... Como é que reagem as pessoas que estão à tua volta? Ninguém consegue ficar indiferente à tua atitude positiva perante os desafios que a vida te colocou...
 
Na verdade, tenho mais tumores... eu estou minada, tenho uns cinco na cabeça, dois na garganta, etc... Mas, são benignos e, uma vez que só vejo de um olho, tudo o que quero é que eles estejam lá quietos, façam a festa, mas não afectem mais a visão. Se assim for, estamos todos bem aqui dentro de mim. Se passarem para a visão do olho direito ou me criarem muitas dores, aí, estamos mal, mal, mal... Muitas vezes, os médicos e as pessoas que me conhecem dizem que houve troca de exames, que não é possível eu ter essas tretas todas e conseguir o que consigo.
 
Acerca do projecto da felicidade... Bem, quando tu passas por dezenas de cirurgias, quando perdes e perdes os teus sentidos, quando passas dias no hospital, tu começas a relativizar as coisas e começas a perceber que atitude positiva muda tudo. TUDO! A minha constante busca pela felicidade fez com que eu aguentasse e aguente firme, e pense sempre que, amanhã vai ser melhor se eu fizer por isso. É um projecto e exige muito esforço e trabalho mas, pelo menos, não quero que a minha vida seja em vão. Quero mais, quero sempre viver mais intensamente. E também, repara, eu tenho uma saúde chata, ok mas, ela não é a minha vida... a minha vida tem tanta coisa bonita, pessoas tão maravilhosas que constituem o meu mundo, o mundo que eu protejo tanto e tanto luto para que se mantenha feliz. Sou muito, muito generosa no amor incondicional. Sou porque sinto. Se não sinto, nada feito.
 



Onde é que vais buscar forças para teres sempre um sorriso e transbordares tanta energia?

Não é sempre, sempre... Também tenho momentos menos bons. O que me leva mais abaixo não é a tristeza, é a exaustão, quando fico esgotada. Mas, como te disse anteriormente, eu tenho uma vida intensa, uma vida cheia, tenho imensos sonhos já realizados, tenho uma família incrível, uma irmandade espectacular e amigos TOP. Gosto imenso de quem sou, gosto imenso de viver e sei que não vou andar aqui sempre - nem tu, nem ninguém - e, por isso, enquanto aqui estou quero mesmo aproveitar, quero mesmo ser feliz, quero mesmo sentir o elixir da vida.

O que te fez escrever "Viver é mágico" e "Que a felicidade vire rotina"?

Sempre gostei de ler, sempre gostei de escrever e, por isso, a escrita de um livro sempre esteve presente. O "viver é mágico" é a minha história, o que me aconteceu em 19 anos de vida... o "Que a felicidade vire rotina" é como eu lidei com isso, o que eu aprendi, o que eu posso transmitir e a mensagem que eu quero deixar.


Tu trabalhas paralelamente em duas empresas ( Portugal e Angola).. o que fazes dentro delas?

Trabalho em mais mas, sim, essas são as duas principais. Faço um bocadinho de tudo - hoje em dia, temos de ser polivalentes - mas, essencialmente, parte de gestão e administração.

Sentes que és uma pessoa abençoada, apesar de tudo?

Não tenhas dúvida, meu amor. SOU MESMO. A vida tirou-me com uma mão e depois, deu com duas :-)


Muitas são as pessoas que se deixam afundar no sofá, pessimistas, perante os dias de stress e o parco dinheiro... se pudesses, o que lhes dirias?
 
É preciso termos muito, muito cuidado com o stress... ele leva-nos ao esgotamento, à falta de sensibilidade pelas coisas mais simples e mais bonitas da vida, numa espiral completamente descendente onde parece que a vida passa ao lado. É preciso sermos pro-activos. As queixas deixam as coisas exactamente como elas estão. Temos de ser um bocadinho inteligentes nesta coisa da vida. Queres resultados ou desculpas? É que, não consegues as duas coisas ao mesmo tempo.
 
Em 2012, participaste em bastantes palestras... estiveste, inclusive, presente no TedxOporto... Quão valiosa foi esta experiência e porquê?
 
Estive, sim... e ainda hoje dou várias palestras para as Universidades. Mas, o Tedx...ai, o TED foi encantador, enternecedor... as pessoas, a energia, todo aquele mundo incrível a andar para a frente na vida, a inspirar... e, mais do que tudo, ter sido convidada pelo Manuel Forjaz... o Manuel era um mestre, era o meu grande ídolo, era alguém que muito admirava. Aprendi tanto com ele e tenho tantas saudades...
 
Tens medo da morte?
 
Das pessoas que amo, tenho que me pelo. Mas, tento nunca deixar nada por fazer ou dizer. Eu sei que tudo muda muito depressa e é por isso que sou tão intensa. Amanhã, pode ser tarde para expressar o que sinto, o meu amor e a minha gratidão. Amanhã, pode ser tarde para abraçar, para amar, para dar... e é por isso que eu faço tudo hoje... o mais possível. Saudades e arrependimentos não trazem ninguém de volta.
Acerca da minha morte... não tenho medo. Tenho medo de sofrer e, se algum dia, estiver num sofrimento interminável, a eutanásia será a minha escolha.
 
Os teus projectos passam pela comunicação e pelos afectos?
 
Sempre! É como se fosse o meu outro lado, o meu respirar... nas grandes empresas estamos sujeitos a elevados níveis de pressão, stress, confusão... muitos número, muita lógica, muita razão... é por isso que sinto que, depois, ao fim do dia ou de manhã - que é geralmente quando escrevo - preciso da catarse, preciso de ouvir o meu coração, preciso de me reequilibrar, preciso de sentir...
 
És vaidosa? Gostas de te cuidar?
 
Sou qb. Não tenho muita paciência ( nem tempo) e, por isso, cuidar de mim, sim; arranjar, também mas, sem perder muito tempo, por favor... porque, fontes de stress já há imensas e não tenho de criar mais uma...
 
 
"Hoje é um bom dia para ser feliz"? O que te faz SER Feliz?
Estar aqui a escrever-te... conseguir levantar-me da cadeira e andar, conseguir ver, conseguir sentir. Ter os que amo comigo. Conseguir fazer, fazer mais, pensar melhor, controlar melhor a minha mente. Conseguir agradecer, conseguir dar, dar, dar... amar, amar, amar...
 
E assim aconteceu... mais uma amizade para a vida na sintonia de uma vontade genuína de ser feliz!
 
 
Inês Monteiro
 

terça-feira, 17 de março de 2015

... Carla Matilde... a enfermeira de urgência...

Muitas são as notícias que nos invadem sobre o desgaste de trabalho na área da Saúde.
Sem falar em doenças, nem reforçar as feridas abertas pelos media, sentamo-nos junto ao mar, numa conversa sobre paixão e dedicação, numa área em fase de exportação.
Connosco e consigo… Carla Matilde, a enfermeira e a pessoa, em simultâneo…
 
 
Enfermagem, porquê?
 
Enfermagem surgiu por acaso. Desde miúda que queria ser veterinária, mas como não tinha possibilidades económicas para ir estudar para fora (na altura o local mais perto onde havia o curso homologado era em Vila Real), comecei a ver outras possibilidades. E enfermagem foi-se afigurando um curso interessante e, ainda, com saída profissional. Contribuiu também para esta opção o facto de ter estado internada por uma cirurgia ao joelho, e lembro-me de ter falado com a minha mãe “Quero isto… ser enfermeira, cuidar dos outros”. E cá estou J Gosto muito daquilo que faço!
Há quantos anos trabalhas nesta área e o que mais gostas no exercício da tua profissão?
 
Trabalho nesta área há 10 anos. O que mais gosto é de poder ajudar os outros. Cuidar de alguém, poder estar ao seu lado, por vezes, nas necessidades humanas básicas, é algo que é muito nobre na minha profissão, e muito gratificante também.
O Serviço de Urgência é como nas séries e nos filmes? J Fala-nos de semelhanças e diferenças que possam existir…
Esta questão faz-me rir… Há cada “gaffe” nos filmes, no que toca a procedimentos, manuseio de material, descrição de quadros clínicos, entre outros. Às vezes, dá vontade de dizer aos produtores para, antes da realização do filme, se informarem como as técnicas realmente são; ou como se usa determinado material, porque para quem é da área, vêem-se coisas aberrantes, que se fossem feitas na realidade poderiam causar danos muito graves. A realidade não é como nos filmes, pelo menos naqueles que estou habituada a ver. Quando vemos séries, por exemplo, há aquele retrato da entrada na urgência com imensa gente à volta da maca, ordens a serem debitadas, a família aos gritos cá fora; e depois dessa “tempestade”, o doente aparece num quarto todo bonito, rodeado de todos os que lhe são próximos, e nem sempre é assim na realidade. 
 
Tens doentes que te marcaram?
 
Sem dúvida! Por questões de sigilo e privacidade, não vou descrever as situações, mas tive doentes que acho que nunca hei-de esquecer. Passo a citar um, no meu 1º estágio hospitalar, tinha um doente atribuído que deveria acompanhar desde a admissão até à alta; e o senhor “E” faleceu durante o estágio. Lembro-me tão bem de tudo, como se tivesse ocorrido na semana passada.
Não só coisas tristes. Há doentes muito castiços e com peripécias engraçadas que também não esqueço.
Tive um episódio em que um bêbado cantou uma serenata a mim e à colega com quem estava, tocando uma guitarra imaginária e tentando manter o equilíbrio numa pose trovadoresca de joelho no chão. Era tão engraçado o homem, no jeito de falar, nos modos exageradamente educados que usava, até a roupa!
Outra altura, estava eu na triagem e uma bêbada (também!) veio sentar-se a pedir-me emprego “oh menina, eu faço de tudo: arranjo unhas, sei varrer, sei tirar o lixo… não quer falar com o seu patrãozinho?” ;)
Podia sentar-me aqui uma tarde inteira e tinha sempre histórias ;)
 
E familiares de doentes?...  Por vezes, não é muito fácil lidar com os mesmos… como geres essas situações menos agradáveis?
 
     É verdade, nem sempre é fácil lidar com os familiares / acompanhantes dos doentes. No meu serviço, em particular, pela elevada afluência, pela falta de espaço adequado para tratar dos doentes e garantir a sua privacidade, pelo elevado grau de stress e exigência a que os profissionais estão sujeitos… Nem sempre consigo dar uma informação em tempo útil, ou falar com um familiar quando solicitada e, por vezes, isso não é bem aceite do outro lado. Chega a ser preciso algum “jogo de cintura” com algumas pessoas.
 
Como é que um profissional de saúde lida com a morte de um doente? A pessoa, por trás do profissional, lida melhor com a morte, em geral, mesmo na sua vida privada?
     Confesso que nem sempre lido bem com a morte. Há situações que não me custam tanto (espero não ser mal interpretada)…por exemplo idosos num estadio terminal, em que a morte é resultado da velhice, em que já não há mais nada para oferecer que lhes possa garantir qualidade de vida…a morte é um processo natural. Encaro melhor neste tipo de situações.
Já quando falece alguém jovem, ou alguém vítima de um acidente grave em que fizemos tudo e não conseguimos, ou alguma doença incurável que provoca sofrimento (estou a dar exemplos), tenho alguma dificuldade em digerir o momento. E então, se tiver que ser eu a tratar do corpo, fico abalada. Ao longo dos anos, vai-se aprendendo a gerir isto, mas não é fácil; e em especial, quando temos que encarar a família ou consolá-la perante a perda, é emocionalmente desgastante.
     Na vida privada, é ainda pior lidar com a morte, porque perdemos os “nossos”, sejam eles familiares, amigos, conhecidos… há que encarar e lidar com isso, faz parte da nossa jornada, não é verdade?
 
Como equilibras a tua vida profissional com a pessoal, sendo que, os horários desta área não são propriamente de segunda a sexta, das 9h às 18h?
 
         Não é por acaso que a enfermagem é das áreas profissionais (a par com outras, sujeitas a trabalho rotativo por turnos) onde há maior taxa de divórcios e de síndromes depressivos. Por vezes, não há vida social e mesmo pessoal, tem alturas que é difícil. Dormimos quando os outros estão acordados, nas saídas de noite andamos rabujentos, amuados, e quem não é da área nem sempre compreende. Temos um aniversário ou um evento familiar e não vamos porque estamos a trabalhar (e no Natal? Custa tanto…). Tenho este tipo de conversas com outros colegas e as opiniões são semelhantes. Tento ter um mínimo de folgas por mês, mas por vezes isso implica uma maratona de trabalho para as ter; e tento aproveitar o tempo livre da melhor forma.
 
E, por falar em vida privada… “há uma linha que separa” a vida do hospital da tua vida?
 
         Às vezes é difícil “desligar” quando saio do hospital. Venho para casa agitada, chateada por uma ou outra situação… e é engraçado, que quando saio com amigos ou colegas enfermeiros, num momento ou outro acabámos por falar em trabalho, seja da situação atual da profissão, seja de peripécias, do serviço em si. Portanto, a tal “linha que separa”, nem sempre separa ;)
 
Como ocupas os teus tempos livres?
 
     Gostava de os ocupar mais ;) ou melhor, de ter mais tempo livre! Gosto de ler, passear, estar com as pessoas de quem gosto, estar de “papo para o ar” sem fazer nenhum, depende do meu estado de espírito no momento.
 
 
O que mais gostas no Serviço de Urgência?
 
     O não haver rotina! Já passei pelo internamento e aí há determinadas rotinas de trabalho consoante o turno. Na urgência, entro ao serviço e trato do que aparece conforme a área em que estiver alocada. Há situações similares diariamente, mas cada doente é diferente.
 
Tens algum sonho nesta área, para lá do Hospital? Gostavas de dar azo a outros projetos na área da saúde? Se sim, quais…
 
         Sinceramente, não. E digo-o com tristeza. Ando um pouco desiludida com a forma como a enfermagem tem vindo a ser tratada pelos nossos governantes e pela forma como os enfermeiros são tratados nas instituições. Atenção, que só falo da realidade que conheço… Gostava de voltar a estudar, mas depois olho para os colegas que se especializaram ou que tentaram outro tipo de projetos dentro da instituição, e não há qualquer reconhecimento, incentivo (e não falo a nível monetário)…
Mais depressa me envolvo num projeto numa área fora da saúde do que ligada à mesma…
 
Qual o maior desafio que tiveste até hoje?
 
Já tive alguns… doentes críticos com os quais lidei na sala de emergência, comunicar uma má notícia, entre outros…
 
Como é que encaras medicinas complementares/ alternativas como a tradicional chinesa?
Não lhes chamo medicinas alternativas, mas sim complementares, pois acho que tanto a medicina oriental como a ocidental podem agir em sinergia de forma a dar o melhor ao doente. Os orientais têm algo que eu admiro que é o olhar o doente e não a doença, e olhar a pessoa como um todo. Na medicina ocidental há o cardiologista do coração, o nefrologista dos rins, etc; e não podemos tratar um órgão / doença isoladamente, pois faz parte de um todo que é o corpo. E se somarmos a isso a parte emocional do doente, a sua cultura, então é que não podemos mesmo ver a doença isolada. No meu entender, só há benefício quando ambas as medicinas são usadas em prol do doente.
 
O que te faz ser feliz?
Coisas simples… um dia de sol, os meus gatinhos, comer uma boa refeição na companhia de amigos / família, o meu afilhado, tomar um café a ver o mar, chegar a casa depois de um dia de chuva e vestir um pijama quentinho, estar à lareira… são pequenas grandes coisas que trazem momentos de felicidade.
 
 
 
E foi com sol que continuámos a conversar, entre o embalo da tarde e da noite…
Obrigada, Carla… garantidamente, muitos serão os leitores e profissionais da área que se irão rever nestas palavras….
 
 
Inês Monteiro